sexta-feira, 16 de abril de 2021

Momento Anômalo do Muon

Não sei se alguém viu a recente fantástica medição do momento anômalo do muon?! Não? Vixe...

Então vamos lá. A descoberta do muon é interessante e pode ser vista como um teste da Relatividade Especial (RE). O tempo de vida dessas partículas é muito pequeno, da ordem de 2 milionésimos de segundo. Os pions, partículas muito interessantes também, ao interagirem com os átomos da atmosfera (vindos do espaço) decaem naturalmente em muons. 

Como tem um tempo de vida muito curto, o muon rapidamente decai em outras partículas um pouco mais estáveis, como elétrons e pósitrons (e neutrinos).


Isso faz com que os muons sejam praticamente invisíveis aos núcleos atômicos presentes na atmosfera (ou seja, descem em linha praticamente reta até a superfície terrestre). Oras, oras, o que precisamos procurar aqui embaixo na superfície, então? Muons que não tiveram tempo de decair, ainda. Mas exatamente quantos chegam na superfície? Bom, a contagem pode ser feita pela expressão simplérrima, como para qualquer decaimento, escrita abaixo

O caso (1) se refere ao valor clássico (sem RE), enquanto que (2) é para o caso onde vale a RE. Mas por que precisamos usar a RE? Porque a velocidade do muon é muito elevada, próxima da velocidade da luz c. O cálculo clássico (1) para uma atmosfera de 15 km fornece mais ou menos 130 muons chegando na superfície a cada 1 trilhão. Usando (2)  e a correção relativística (3), calcula-se o número de mais ou menos 630 bilhões de muons atingindo a superfície a cada 1 trilhão de eventos. Este número concorda com o que é medido, como constataram Carl D. Anderson e Seth Neddermeyer (1936)J. C. Street e E. C. Stevenson (1937).

Agora voltando ao momento anômalo do muon. O pião executa um tipo de movimento quando gira em torno do seu próprio eixo chamado precessão. O mesmo acontece com o giroscópio, como pode ser visto nesse vídeo. Os elétrons, por exemplo, também apresentam um movimento semelhante quando submetidos a um campo magnético forte. Eles agem como se houvesse um pequeno ímã dentro deles que, ao interagir com o campo magnético forte, oscila, fazendo com que a partícula apresente o mesmo comportamento do giroscópio.

Esse ímã interno é, na verdade, o momento de dipolo magnético da partícula. Esse momento, ao interagir com o campo magnético externo, faz com que a partícula gire. Ou seja, esse momento magnético de dipolo obrigatoriamente tem origem vetorial.

Os muons, que são partículas elementares de carga -1 e massa ~200 vezes maior que do elétron, apresentam o mesmo comportamento. Ao serem imersos em um campo magnético extremamente intenso passam a girar porque o seu momento magnético de dipolo interage com o campo magnético externo. Essa oscilação (ou taxa de precessão) depende da intensidade do momento de dipolo magnético do múon. Esse momento de dipolo recebe a letra g como identificador (g de giromagnético). Como ocorre com todas as partículas, suas propriedades devem ser medidas para que funcionem como testes daquilo que é previsto teoricamente.

Dentro do Modelo Padrão (MP), que é o que temos no momento, está previsto um momento de dipolo magnético para o muon visto na faixa verde da figura abaixo, obtida aqui (há um vídeo bem legal também). Ocorre que os valores medidos experimentalmente são maiores, vistos na outra faixa. Essa diferença é de cerca de duas unidades e, por isso, o que se procura é o g-2 (gê menos 2). O artigo com o experimento está aqui.

A previsão do MP é absurdamente precisa e leva em conta todas as interações que o muon pode ter (com campos e outras partículas conhecidas). Isso torna as coisas mais intrigantes ainda, pois se tudo o que é conhecido foi levado em conta, como explicar a divergência entre o que é calculado e o que é medido?

A primeira resposta é: flutuação estatística. Os processos envolvidos podem conter algum grau de aleatoriedade, resultando no que se chama de flutuação estatística. Explicando de outro modo: os dados mensurados para um mesmo experimento podem resultar em valores ligeiramente diferentes (por variações de pressão na sala, temperatura, etc.). Essa variabilidade é chamada de flutuação estatística. Em geral, procura-se retirar toda e qualquer flutuação estatística, ainda mais num experimento deste porte. Então, é pouco provável que o resultado obtido seja devido a algo deste tipo. Mas não é improvável.

Por outro lado, se não é flutuação estatística, então o que é? Se a interação do muon com todos os campos e partículas foi considerada no cálculo do momento anômalo, então só nos resta apelar para o que não é conhecido. É ai que a porca torce o rabo! Se há necessidade de se usar partículas não previstas no MP, então o Modelo Padrão já era. Estamos falando de física nova, ALÉM do MP. Não que o MP já não apresentasse problemas antes disso. Ele não explica a hierarquia de massa, a instabilidade do vácuo e por ai vai. Ou seja, ele não está feito e acabado (e por isso é só um modelo).

Há inúmeras variantes que descrevem a física além do MP, todas bastante complicadas e com suas próprias previsões (inclui a variante que prevê matéria escura, por exemplo). Um pequeno review pode ser visto aqui (of course, my horse, em inglês).

Há detalhes dos experimentos que deixarei para um outro post. Por hoje é só.



segunda-feira, 12 de abril de 2021

Plasma de Quarks e Gluons - 3

 Bom, se você leu os dois posts anteriores, então sabe que:

1. A QCD é a teoria das interações fortes;

2. Os quarks estão confinados e só podem ser livres no limite assintótico (altas temperaturas);

3. O Plasma de Quarks e Gluons pode existir no limite de altas temperaturas;

4. Pode haver quarks livre no QGP;

Este é o resumo da ópera, até agora. Mas como é que podemos "ver" quarks livres? Pra ser sincero, não "veremos" nada. O que buscamos encontrar são efeitos secundários da presença deste tipo de matéria. Que tipos de efeitos? Vários. 

Para começar, devemos falar sobre colisões entre partículas elementares. Em geral, estudamos colisões do tipo 

onde a, b e c são partículas bem definidas e X pode corresponder a um estado fragmentado. Pois bem, o detalhe mora nas partículas que podem surgir no estado X. Por exemplo, a chamada supressão da partícula (meson) J/psi é considerada como uma consequência da formação do QGP. (Há outras indicações, mas aqui só vou falar da J/psi.)

A partícula J/psi é interessante, não só por ter dois nomes (foi descoberta quase ao mesmo tempo por dois grupos diferentes, nomeada J por um e psi pelo outro). Bom, este meson é formado por um quark c (charm) e um antiquark bar{c} (um c com uma barra em cima). Mesons que são formados por quarks charm recebem o nome engraçadinho de charmonium. 

O meson J/psi se forma em diversos tipos de colisões (são vistos como jatos de partículas). Mas o que se espera que o J/psi faça? É esperado que haja uma supressão ou aumento no sinal do J/psi. Isto é, que o número total dessas partículas registrado nos aparelhos seja muito pequeno, pois em altas temperaturas os quark c e bar{c} devem se separar, produzindo menos J/psi no final da reação. Ou,  no caso de um aumento, que sejam detectadas mais partículas deste tipo do que o esperado. Em geral, espera-se este último tipo de comportamento na colisão de íons pesados.

Historicamente, este tipo de matéria foi "descoberto" algumas vezes ao longo do tempo, mas sempre com possibilidade de não ser de fato o que se esperava. Isto se deve, basicamente, ao equipamento utilizado na época, ainda bastante aquém do que se desejava. Apenas em 2000 foi que se detectou um sinal inequívoco da formação deste tipo de matéria. 

Apenas para termos uma ideia da temperatura nas colisões entre partículas elementares, a temperature mais alta já produzida foi de 250 mil vezes a temperatura no núcleo do nosso sol. Então quando falamos de QGP estamos tentando reproduzir o começo do universo. É complicado...













sexta-feira, 9 de abril de 2021

Plasma de Quarks e Gluons - 2

 A Cromodinâmica Quântica é uma teoria bastante complicada e ainda em franca evolução. Seu início é normalmente tomado lá nos idos de 1973 (eu estava nascendo...), quando Gross e Wilcek e, independentemente, Politzer, mostraram que para os quarks o que valia era a interação forte, com estas partículas estando confinadas em hadrons (barions e mesons).

Oras, oras, como? Bom, interação forte é uma das forças fundamentais do universo, mas que atua numa escala muito, muito pequena. Basicamente diz respeito apenas aos quarks e gluons. E o que fizeram Gross, Wilcek e Politzer? Eles mostraram, grosso modo, que o potential de interação destas partículas elementares é bastante diferente do que podemos considerar como usual (na física clássica). Por usual estou usando, por exemplo, o potencial gravitacional (ou Coulombiano): quanto mais distante a separação entre as massas (ou cargas), menor é a intensidade da interação. No caso da interação forte, o que vale é o seguinte: quanto mais próximo os quarks estão entre si, menos interagentes são. Ou seja, quando você tenta separar um do outro, a intensidade da interação aumenta!

De modo mais formal, Gross, Wilcek e Politzer mostraram que a liberdade assintótica está presente nas teorias de calibre (gauge) não-abelianas. E a QCD é uma delas. Não-abeliana?! Bom, abeliana com certeza você sabe o que é, só talvez não esteja ligando o nome à pessoa. Um grupo é todo conjunto onde está definida uma operação matemática com os elementos deste conjunto. Ser abeliano ou não significa que vale ou não a comutatividade dessa operação. Uma teoria abeliana é aquele em que vale a comutatividade. A Eletrodinâmica Quântica, predecessora da QCD e provavelmente a teoria mais bem testada até hoje, é abeliana. A QCD é não-abeliana, o que a torna incrivelmente mais complicada.

Bom, resumindo até aqui: quando você aproxima os quarks uns dos outros, eles se tornam partículas livres (um gás de partículas livres - ou quase-livres); quando você os afasta, eles passam a se comportar como se estivessem ligados uns aos outros. A fase na qual eles estão ligados é chamada de confinamento, no sentido de que não encontramos quarks livres na natureza, apenas em pares. A fase livre é apenas assintótica, pois apenas no limite de energias muito, muitos altas é que conseguiríamos vê-los livres. Isto é, a liberdade é apenas no limite de altas energias (ou altas temperaturas, no caso do QGP).

É muito interessante notar que várias pessoas entre os anos 1960 e 1973 "rasparam" na descoberta da tal "liberdade assintótica". Ou seja, a ideia de que havia um fenômeno novo a ser descoberto estava presente nas discussões de ponta. Acho que o mais interessante é o caso do físico Kenneth Wilson, que simplesmente escreveu um artigo sobre grupos de renormalização e não considerou, dentre os casos possíveis, o que resultaria na liberdade assintótica (mas não se preocupe, ele ganhou o Nobel de 1982 por outras fantásticas contribuições à física). Ele escreveu sobre isso tempos depois. Mas há outros, como Curtis Callan, Kurt Symanzik e o fantástico Gerard 't Hooft.

Mas viajei! Então vou voltar! Bom, se temos confinamento e temos liberdade assintótica, então precisamos dizer como a matéria de comporta em cada fase, para podermos posicionar o problema e saber o que procurar do ponto de vista experimental. No confinamento, temos que procurar a matéria usual, a bariônica, e explicar como ela se forma a partir de quarks e gluons. Ou seja, a teoria precisa ser capaz, então, de dizer o espectro de massa das partículas. 

No caso da liberdade assintótica o que devemos procurar? Quarks livres, claro! Mas como fazer isso? Dá pra fazer isso diretamente ou precisa ser feito de modo indireto? Bom, falarei disso num próximo post sobre QGP.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Plasma de Quarks e Gluons - 1

 Plasma, mais um estado da matéria. Mas que estado seria este? Bom, todo mundo conhece os 3 estados básicos: sólido, liquido e gasoso. Certo? E como seria este novo estado? 

Pra começo de conversa, nem é um estado novo. Na verdade, historicamente falando, é o mais antigo de todos e está presente no universo desde a sua mais tenra idade. É que para imaginar o universo você deve pensá-lo de trás pra frente: muito, muito quente (e denso) no início e que foi esfriando até chegar na temperatura que temos agora. Ou seja, o resfriamento permitiu que as outras fases da matéria passassem a existir e não apenas o plasma. Mas descobrimos o plasma apenas recentemente quando tivemos tecnologia para isso. Quer dizer, nem tão recente assim. O físico Langmuir descobriu este estado da matéria lá nos anos de 1920, trabalhando nos laboratórios da General Electric.

Mas no consiste o plasma, mesmo? É um gás altamente ionizado composto por elétrons e íons positivos livres, resultando num gás com carga elétrica total nula. Como? Ao aquecermos um gás nós fornecemos energia às suas moléculas, que terão seus elétrons arrancados de suas órbitas. O resultado disso será um gás onde teremos a separação dos elétrons de seus núcleos atômicos. Logo, teremos um gás onde os elétrons estarão livres (e os núcleos positivos também). Ué, mas as cargas contrárias não deveriam se atrair, Serjão? Com certeza! Porém, a energia no gás é muito intensa, fazendo com que a agitação térmica impeça a união das partículas com cargas opostas. A explicação acima é para o que chamamos de plasma térmico, que ocorrer, por exemplo, no interior de estrelas ou durante a passagem de um raio na atmosfera. Há os plasmas não térmicos, no qual os elétrons estão numa temperatura muito mais elevada que os íons positivos que compõem o plasma. Neste caso, os elétrons trafegam pelo plasma com velocidades muito elevadas, enquanto o restante do plasma permanece em relativa tranquilidade, com temperatura próxima da temperatura ambiente. As lâmpadas de neônio funcionam com base nesse fenômeno (Langmuir trabalhava na General Electric, lembra?).

Por outro lado, o plasma de quarks e gluons seria o quê? Lembrando que quarks e gluons são os constituintes básicos da matéria e que os gluons são as partículas que relacionam um quark com o outro (o fóton faz o mesmo para o caso dos elétrons, prótons e outras partículas), então temos um plasma que contém este tipo de matéria, chamada de matéria não bariônica: quarks e gluons livres! Ué, mas eles estavam presos em que mesmo? Loga história...vamos por partes.

Este tipo de estado da matéria está previsto na Cromodinâmica Quântica (QCD, acrônimo em inglês), que é a teoria das interações fortes, para temperaturas e densidade muito elevadas. É muito provável que tenha sido o estado dominante da matéria no universo durante seus primeiros microsegundos de vida. O estudo deste tipo de matéria é feito dentro do chamado Plasma de Quarks e Gluons (QGP, acrônimo em inglês), que é a parte da QCD que estuda estes objetos. Há diversos experimentos ao redor do mundo procurando por este estado da matéria. Atualmente, o Relativistic Heavy-Ion Collider (RHIC) no BNL e o Large Hadron Collider (LHC) no CERN buscam por este tipo de matéria. No entanto, é curioso notar que nos anos de 1980 e 1990 já havia indicativo de que este estado da matéria já poderia sido observado, mas deixaram isso passar despercebido no chamado Super Proton Synchrotron (SPS) no CERN. Ocorre que é bastante difícil encontrar as assinaturas deste tipo de evento (o plasma de quarks e gluons). Talvez a descoberta do bóson W no SPS tenha obscurecido um pouco a busca por este plasma.

Voltarei a falar sobre este assunto num próximo post, porque este é só o introdutório sobre o tema. Daí falarei de como os quarks e gluons se tornam livres e de como surge o plasma destes carinhas.